quinta-feira, 8 de setembro de 2011

CICATRIZES


“Quanto ao mais, ninguém me moleste; porque eu trago no corpo as marcas* de Jesus” (Gl 6.17)

Quase todos nós carregamos marcas pelo corpo. Muitas são cicatrizes vindas da infância. É possível até contar um pouco de nossa história através delas: a queda da bicicleta, a queimadura no fogão, o corte com a faca, o encontro com o arame farpado.... Alguns mais antigos trazem os sinais que a varíola deixou quando ainda não havia vacina.
Marcas podem ser chamadas de “estigmas” (do gr. Stigmata*), como Paulo o fez em Gálatas 6.17, que eram as cicatrizes provocadas por tortura, apedrejamento ou ferro em brasa para marcar escravos e animais.
É interessante que a literatura sempre se valeu de personagens que foram estigmatizados pelo que traziam no corpo: o corcunda de Notre Dame, de Vitor Hugo, era um homem de feições deformadas, membros retorcidos, porém sensível às manifestações da beleza, e o “Fantasma da Ópera” conta a história de um homem desfigurado que exercia medo e fascínio.
Assim como as queimaduras e os cortes deixam seus sinais pelo corpo, é certo que a alma também possui a propriedade de receber marcas, mas ao contrário do corpo, que com o passar do tempo se regenera, muita dor causada na infância ainda permanece viva. São sentimentos que se perpetuam e os anos parecem não atenuar. É como se aquelas cicatrizes quisessem ser notadas para dizerem: “olhem o que fizeram comigo”.
Se a cicatriz só marcou o corpo, tempos depois somos capazes de rir, pois a dor ficou perdida no passado, mas se ela atingiu a alma, qualquer lembrança do fato faz despertar todo o desespero que causou. E o que é pior: por conta da associação simbólica, aquele que feriu adquire novos rostos, e isso faz com que se continue lutando contra pessoas que não foram exatamente aquelas que causaram a dor.
Conseqüência: muitas oportunidades são perdidas com medo de reviver a dor de um fracasso passado. Outros fecham o seu coração para um relacionamento afetivo para não correr o risco de serem abandonados novamente.
Por que reagimos assim? É o sentimento de vergonha ou humilhação que não quer ser repetido. É como se a alma tivesse feito um juramento: “nunca mais farão isso comigo outra vez”. Quase dá pra ouvir Judas justificando seu apego ao dinheiro para se proteger das privações que passou na infância, ou a prostituta que vende seu corpo para evitar a dor de estar sozinha. As feridas tornam-se então uma espécie de escudo para justificar gestos e escolhas.
O que fazer com marcas tão indeléveis? Dê de ombros, viva a vida que Deus lhe concedeu olhando para a frente, e esqueça-as. Mas não precisa negá-las, apenas saiba que elas estão ali. Faz parte de sua história, é verdade, mas não lhes conceda o direito de direcioná-lo pelo resto de seus dias – são péssimas conselheiras. Lembro-me quando criança minha mãe dizendo: “Não mexa na ferida para não infeccionar”. Felizmente, hoje, estou em paz com elas.
Cicatrizes apontam para lutas, e algumas delas levam a marca divina. Foi um pusilânime (covarde)  Jacó, indolente (preguiçoso) e “protegido da mamãe” que teve no vau de Jaboque um embate que mudou sua história. Depois de uma madrugada de luta deixou aquele riacho com um novo nome, mas como ninguém sai incólume de um encontro com Deus, ele também foi embora para casa manquejando duma coxa (Gn 32.31), uma marca que possivelmente levou para o resto da vida.
Não sei em quais áreas de sua vida há cicatrizes, mas Deus conhece cada pedaço do seu ser e O sabe. Quasímodo, o corcunda sineiro da Catedral de Notre Dame isolava-se para não expor suas deformações. Uma máscara sobre o rosto desfigurado foi a forma utilizada pelo “fantasma” da ópera para esconder sua “fealdade”. Esconder-se e viver defensivamente parecem ser características comuns de quem se sente ferido. Mas em Cristo, somos libertados desses sentimentos, e podemos dizer como o apóstolo:
“Pela graça de Deus, sou o que sou” (1Co 15.10). Com cicatriz e tudo.

Texto de DANIEL ROCHA -  PASTOR E PSICÓLOGO DA IG. METODISTA EM ITABERABA

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